A sorte está lançada. No latim, alea jacta est.
Conta Suetônio (69-122), que Julio César disse essa frase no ano 49 a.C., em plena guerra civil romana, confrontando-se os generais Pompeu, quando César postava-se vacilante, com seu exército às margens do Rubicão, rio que separava a Itália da Gália Cisalpina.
Em dado momento César viu um homem muito alto, sentado próximo, pitando um pedaço de junco.
A estranha figura arrebatou a trombeta de um soldado e, pondo-se a soprar o toque de batalha, vadeou o rio em direção à margem oposta.
Empolgado, Júlio César anunciou:
"Vamos avançar, e seguir para onde quer que os desígnios dos deuses e as provocações dos inimigos nos chamem."
A visão daquele ser fantasmagórico que avançara resoluto, convocando seu exército à batalha afigurou-se a César um sinal divino.
Resoluto, fez, em altas vozes, a proclamação famosa:
– Alea jacta est! – a sorte está lançada!
E atravessou o Rubicão, dando início a uma guerra que culminaria com seu triunfo sobre as tropas de Pompeu.
Você deve achar que enlouqueci de vez. Quase! Ou então está se perguntando: qual a relação entre arbitragem e a sorte? Eu responderia: "Toda e total!" Explico.
Já diz o ditado que árbitro e trapezista, além de competência, precisam de muita sorte. E quando a competência deixa de ser requisito para figurar numa escala de arbitragem restando apenas a sorte? Não haveria um termo mais adequado, sorte, para definir as expectativas que rondam os árbitros do futebol brasileiro a cada rodada, considerando que pouco importa seu nível de qualificação, experiência na função ou o desempenho alcançado nos jogos que comandou para garantir futuras designações. Quem nos lê em outros países (e tem) deve imaginar que a tradução não está sendo fiel ao texto original, tamanho o absurdo da medida. Mas nesse caso, acreditem se quiser, o Brasil é o único país do mundo onde os árbitros de futebol são escalados para os jogos mediante sorteio.
Como foi reconhecida a profissão recentemente, numa norma legal de pouca utilidade prática, o profissional de arbitragem deve ser o único no país que depende de um globo repleto de bolas pares e ímpares para saber se trabalhará ou não. Detalhe que se a bola não cair, também não cairá qualquer centavo de real em seu bolso.
Tudo começou quando os nossos legisladores, sérios, probos e acima de qualquer suspeita, resolveram criar um mecanismo que supostamente acabaria com esse grupo de malfeitores chamados árbitros de futebol, inserindo algumas normas no famoso Estatuto de Defesa do Torcedor, concebido através da Lei nº 10.671/03, com as alterações processadas pela Lei nº 12.299/10, destinando um capítulo específico a arbitragem esportiva, que tomarei a liberdade de lançar alguns comentários (*). Diz a lei em comento:
DA RELAÇÃO COM A ARBITRAGEM ESPORTIVA
Art. 30. É direito do torcedor que a arbitragem das competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões.
(*) Isso quer dizer que até então os árbitros eram parciais e dependentes. Não bastasse os ridículos honorários que são pagos em algumas competições pelos padrões do futebol, muitas vezes receber já é uma conquista. Receber previamente é letra morta na referida lei. Isenta de pressões? Balela. Pra pressionar a arbitragem colocam o banco da equipe mandante com quase vinte pessoas na orelha do assistente ao longo do jogo. Em alguns casos o vestiário da equipe mandante é lindeira ao vestiário da arbitragem.
Parágrafo único. A remuneração do árbitro e de seus auxiliares será de responsabilidade da entidade de administração do desporto ou da liga organizadora do evento esportivo.
(*) Salvo uma ou outra exceção quem paga é o clube subtraindo do borderô da partida. E se não der renda? Em muitos estados provavelmente não receberá. Então o árbitro precisa torcer pra ser contemplado no sorteio e rezar ainda mais pra que tenha público no estádio.
Art. 31. A entidade detentora do mando do jogo e seus dirigentes deverão convocar os agentes públicos de segurança visando a garantia da integridade física do árbitro e de seus auxiliares.
(*) Segurança no Brasil? Pulo.
Art. 31-A. É dever das entidades de administração do desporto contratar seguro de vida e acidentes pessoais, tendo como beneficiária a equipe de arbitragem, quando exclusivamente no exercício dessa atividade. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
(*) Existe sim. Rezemos pra que os árbitros não precisem usá-lo.
Art. 32. É direito do torcedor que os árbitros de cada partida sejam escolhidos mediante sorteio, dentre aqueles previamente selecionados.
(*) Vide abaixo. Cumpre-se. Árbitros de cada partida (no plural).
§ 1º O sorteio será realizado no mínimo quarenta e oito horas antes de cada rodada, em local e data previamente definidos.
(*) Vide abaixo. Cumpre-se.
§ 2º O sorteio será aberto ao público, garantida sua ampla divulgação.
O tal do sorteio de árbitros foi uma inovação trazida pelo art. 32 do Estatuto do Torcedor. Parte da premissa de que os árbitros são parciais, dependentes e, ao contrário do que prega a Magna Carta, desonestos e culpados por presunção legal. Pior é ouvir que essa metodologia de escolha assegura mais imparcialidade e independência na atuação dos árbitros, transparência e neutralidade. Como se um sorteio com 48 horas de antecedência pudesse inibir qualquer tipo de falcatrua em sites de apostas, etc. O que o legislador fez foi exatamente o mesmo que o marido traído, ao vender o sofá da sala pra acabar com os encontros amorosos da esposa libertina. Em outras palavras, o sorteio jamais impedirá casos de manipulação de jogos e compra de resultados. E arremato dizendo o que sempre preguei abertamente.
"Os árbitros de futebol pertencem a uma das classes profissionais mais honestas de que tive a oportunidade de participar."
Pior é saber que a indigitada lei foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN, ajuizada pelo Partido Progressista, decidindo a Suprema Corte que o Estatuto do Torcedor é totalmente constitucional. E a ANAF, salvo melhor juízo, sequer participou como Amicus Curie (amigo do rei) pra esclarecer alguns pontos controvertidos. Sua inconstitucionalidade é flagrante e não ultrapassa o artigo 5º da Constituição, referente aos direitos e garantias fundamentais, dentre elas o contido no inciso XIII que diz:
"É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendendo as qualificações profissionais que a lei estabelecer."
No caso do árbitro de futebol, mesmo qualificado profissionalmente, precisará se submeter a um sorteio, pois do contrário está vetado seu exercício, mesmo que os responsáveis pelas designações dos árbitros queiram escalá-lo.
Será que o mesmo legislador aceitaria sortear entre o médico especialista e o recém formado para realização da cirurgia de alto risco? Porque não sortear entre o piloto experiente e o novel aviador para assumir o comando da aeronave particular? E os réus do mensalão escolheram advogados recém formados ou renomados criminalistas?
Mas o que mais me impressiona nesse circo dos horrores, é a pompa que se dedica ao sorteio de árbitros no Brasil. Tornou-se um acontecimento de norte a sul, frequentado até por presidente e diretores de federações, com transmissão ao vivo, repetição dos melhores momentos, enfim, um evento garboso e glamoroso destinado a uma inutilidade sem precedentes. E nesse caso não há qualquer previsão legal mas pura vaidade ou excesso de zelo sem nada que justifique.
Pra finalizar pergunto:
Porque somente o árbitro é sorteado enquanto os árbitros assistentes são designados diretamente? Se a lei fala em árbitros para cada jogo no plural, certamente refere-se a toda equipe de arbitragem, pois do contrário o texto viria no singular. Pensando bem, quanta tolice. E eu desperdiçando meu tempo pra escrever sobre essa baboseira legislativa. Pra que fique bem claro, refiro-me e analiso apenas a parte da lei direcionada a arbitragem, até porque a norma, no geral, contém diversos avanços.
Esperança de mudanças agora tem um nome. Deputado Federal Evandro Rogério Roman. Quem sabe seja esse seu primeiro projeto vitorioso em prol da classe a qual ainda pertence.
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